O projeto é descrito como alternativa ao SWIFT, com rede federada de mensageria e liquidação.
Especialistas alertam que monitoramento excessivo e restrições podem impulsionar adoção de cripto.
A ambição do BRICS de montar um trilho próprio para pagamentos transfronteiriços ganhou tração em 2025. Entre declarações oficiais e movimentos técnicos, o projeto apelidado de BRICS Pay voltou ao centro do debate.
O objetivo do projeto é reduzir custos e dependência do dólar. No entanto, ele pode ter um efeito colateral. Paradoxalmente, o sistema pode fortalecer a tese das criptomoedas caso seja desenhado como um mecanismo de controle.
Essa é a visão do economista Paulo Aragão, economista com especialização em inovação no MIT, que fala em ‘centralização com vigilância’. Ele enxerga o apelo por alternativas descentralizadas, abertas e resistentes à censura como o Bitcoin.
O ponto de partida é político e técnico. Em julho, líderes do BRICS reafirmaram a orientação para um sistema de pagamentos transfronteiriços próprio. Este sistema contaria com interoperabilidade e uso ampliado de moedas locais, como parte de uma agenda mais ampla de soberania em pagamentos.
A diretriz foi chancelada por ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais, incumbidos de ‘destravar’ integrações e padrões de mensagens entre as infraestruturas nacionais do bloco.
O impulso multilateral pode reforçar alternativas aos trilhos dominantes (SWIFT, dólar e redes bancárias correspondentes).
O que é o BRICS Pay?
Autoridades e think tanks têm descrito o BRICS Pay como um mecanismo de mensagens para pagamentos. Ou seja, trata-se de algo mais próximo de um ‘SWIFT alternativo’ do que de uma nova moeda que competiria com as melhores criptomoedas do mercado.
A plataforma serviria para assentar operações em moedas locais do bloco, com ‘nós’ geridos por participantes e sem um hub central único. Essa arquitetura, uma espécie de rede federada, aparece em sumários públicos do projeto e em análises independentes, com ênfase nas motivações de cortar custos, resistir a interrupções políticas e diminuir a fricção cambial nas rotas Sul-Sul.
Autoridades da África do Sul já haviam frisado que não se trata de ‘substituir a SWIFT’. O objetivo é diversificar canais e ampliar o uso de moedas domésticas em comércio e finanças.
O movimento ocorre junto ao avanço de moedas digitais dos bancos centrais (CBDCs) e trilhos domésticos de pagamentos nos países do BRICS.
Por exemplo, a China tem levado o e-CNY a novos patamares. Além disso, o Banco Popular da China anunciou neste ano a expansão do uso internacional e um centro de operações do e-CNY em Xangai. Também há mais bancos estrangeiros aderindo ao CIPS para liquidações em yuan.
O discurso oficial associa multipolaridade cambial e infraestrutura digital como instrumentos para reduzir a dependência do dólar.
EUA trava CBDC própria
O pano de fundo global também mudou. Os EUA congelaram a agenda de um CBDC de varejo, embora sigam em pesquisas de atacado, o que deixa o país isolado entre seus pares. Isso abre espaço político para arranjos alternativos florescerem fora da órbita ocidental.
Do lado russo, relatórios recentes mostram a integração incremental de trilhos como SPFS (mensageria), MIR (cartões) e FPS (instant payments). Além disso, há menções à expansão de transações cross-border com parceiros do BRICS.
Desse modo, o que há é a costura de um ecossistema que, se não é ‘um sistema único’, pode se tornar uma malha de interconexões capaz de substituir parte do correspondente bancário tradicional.
Na Índia, empresas e órgãos técnicos exploram plataformas de integração global inspiradas no sucesso do UPI e em novos acordos bilaterais. A prioridade é reduzir taxas, prazos e opacidade em transações internacionais. Aliás, esse é o tipo de dor que o BRICS Pay se propõe a resolver.
BRICS Pay pode impulsionar demanda pela descentralização
É nesse contexto que a leitura de Paulo Aragão se torna crucial. Para ele, se o BRICS Pay vier ‘carregado’ de monitoramento fino, restrições de acesso e pouca autonomia do usuário, o sistema pode alimentar a procura por criptoativos. Afinal, segundo Aragão:
Sempre que surge uma tentativa de centralização e vigilância excessiva, aumenta o apelo por alternativas descentralizadas.
A ideia casa com o DNA do Bitcoin, concebido no pós-2008 como resposta a sistemas financeiros centralizados: políticas discricionárias, ‘liga/desliga’ de acesso ao dinheiro e single points of failure.
Nesse quadro, qualquer CBDC com controles granulares, isso é, limites por setor, congelamento instantâneo e geofencing de pagamentos, tende a reforçar a narrativa de redes abertas, com custódia soberana e liquidação sem permissões.
Aragão resume essa visão:
O Bitcoin foi criado justamente em resposta a sistemas financeiros centralizados, e seu principal diferencial é permitir que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, tenha acesso a uma rede financeira sem intermediários ou permissões. No longo prazo, qualquer movimento de governos em direção a mais controle tende a reforçar a narrativa e a proposta de valor das criptomoedas.
Integrações possíveis
O que a literatura e os anúncios oficiais deixam claro é que o BRICS Pay não nasce no vácuo. Há esforços para interligar mensageria, liquidação e FX entre as jurisdições. Portanto, é plausível que pilotos de CBDCs interoperáveis (‘múltiplas CBDCs’) sejam usados para assentamento bruto em tempo quase real nas pontas.
Propostas assim já aparecem em análises e notas setoriais sobre o ecossistema do BRICS e projetos multilateralizados, como o mBridge. Eles incluem testes de canais multi-CBDC com foco em prazos, custos e transparência.
O fio condutor é a substituição de etapas burocráticas por mensageria programável entre bancos e infraestruturas nacionais.
Do lado pró-BRICS Pay, os argumentos são robustos: redução de spread, liquidação previsível, menor risco de sanções extraterritoriais e destravamento de comércio entre países do bloco e parceiros ‘BRICS+’.
As declarações oficiais sublinham a busca por interoperabilidade e uso de moedas locais, metas que, em tese, não colidem com os criptoativos e podem até conviver com um mercado onde empresas usem Bitcoin e stablecoins para tesouraria e hedging. Enquanto isso, pagamentos de varejo e atacado vão rodar no trilho estatal mais barato.
Do lado crítico, a pergunta é: quem audita o auditor? A promessa de que o BRICS Pay seria ‘descentralizado’ no sentido de mensageria federada não implica neutralidade de política.
Em resumo, o desenho final, incluindo detalhes sobre salvaguardas, dirá se o novo trilho será um corredor aberto e barato ou um funil de comando.
Disclaimer: Coinspeaker está comprometido em fornecer reportagens imparciais e transparentes. Este artigo tem como objetivo fornecer informações precisas e oportunas. Mas não deve ser considerado como conselho financeiro ou de investimento. Como as condições do mercado podem mudar rapidamente, recomendamos que você verifique as informações por conta própria. E consulte um profissional antes de tomar qualquer decisão com base neste conteúdo.
Flavio Aguilar é jornalista e economista formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua há mais de 15 anos como repórter e editor em jornais e portais de notícias no Brasil. No momento, está cursando o mestrado em estudos literários da Universidade do Porto.
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