Bacen inaugura nova era contábil no mercado cripto, explica especialista
Para Thaís Almeida, contadora especialista da Contiliza, o desafio será harmonizar a descentralização da blockchain com os padrões rígidos da contabilidade tradicional.
BCB publica Resoluções 519, 520 e 521, criando as SPSAVs e impondo padrão contábil do COSIF.
Auditorias obrigatórias e relatórios de prova de reservas passam a ser exigidos.
Segregação patrimonial e contas individualizadas tornam-se regra.
Blockchain é tratada como livro-razão contábil e ferramenta de compliance.
Desafios: valoração de tokens sem mercado, registro de staking e airdrops.
Ganhos e perdas passam a ser controlados de forma contábil e prudencial.
Brasil se aproxima dos padrões IFRS (IAS 38 e IFRS 9).
A publicação das Resoluções nº 519, 520 e 521 pelo Banco Central do Brasil (BCB) marcou o início de uma nova fase de maturidade institucional para o ecossistema de criptoativos no país.
No âmbito contábil, as publicações do Bacen mudam de forma relevante a forma como executivos e investidores da indústria precisam lidar com entidades reguladoras.
Com vigência a partir de 2 de fevereiro de 2026, as normas estabelecem regras para as Sociedades Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (SPSAVs) e determinam que exchanges, fintechs e custodiante passem a adotar padrões contábeis e de governança compatíveis com o sistema financeiro tradicional.
Para a contadora Thaís Almeida, especialista em criptoativos e sócia da Contiliza, o impacto é profundo.
‘As Resoluções BCB 519, 520 e 521 representam apenas o início dessa transformação sob a ótica contábil. Ainda teremos diretrizes específicas, previstas na Consulta Pública 122, mas a regulamentação já trouxe pontos essenciais, como a segregação dos valores custodiados em nome de clientes e dos ativos virtuais pertencentes ao próprio custodiante. Tudo isso gera reflexos contábeis diretos’, explica.
O COSIF chega ao universo cripto
Um dos efeitos mais imediatos da nova regulamentação é a exigência de que as SPSAVs passem a seguir o COSIF (Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional), um padrão até então restrito a bancos, instituições de pagamento e cooperativas de crédito.
‘A partir do momento em que as PSAVs passam a ser reguladas, elas também ficam sujeitas ao COSIF, o padrão contábil das instituições reguladas pelo Banco Central’, afirma Thaís.
A mudança representa uma ruptura com a prática comum das exchanges, que até agora operavam com planos de contas genéricos, sem exigência de demonstrações auditadas.
Com as novas regras, essas empresas deverão publicar balanços auditados sem ressalvas, conforme destacou a contadora.
‘Para solicitar autorização ao Banco Central, será imprescindível apresentar demonstrações financeiras auditadas, e por uma boa auditoria. O próprio BC já sinalizou que relatórios com ressalvas podem ser impeditivos para a concessão da licença. Ou seja, não basta ter balanço auditado,é preciso qualidade e consistência nas demonstrações.’
Governança, transparência e provas de reservas
A contadora explica que o novo marco regulatório vai muito além da autorização formal. Ele inaugura uma nova cultura de governança contábil e transparência operacional.
Entre os principais pontos exigidos estão:
Plano de governança contábil aprovado formalmente pela diretoria;
Relatórios públicos de provas de reservas e posição de staking;
Mecanismos internos de controle que permitam rastrear origem e destino dos ativos digitais, incluindo chaves e carteiras;
Políticas documentadas de segregação operacional e contábil das carteiras de clientes;
Auditorias bienais obrigatórias e demonstrações auditadas periodicamente.
‘A contabilidade precisa transmitir confiança e transparência. Clareza sobre tokens, cotação na data da operação e notas explicativas detalhadas são pontos essenciais para a segurança de quem analisa as demonstrações’, destaca Thaís.
Ou seja, as exchanges precisarão estar à par de todos os pares negociados na plataforma, desde as melhores criptomoedas no mercado até os ativos menos buscados.
Segregação contábil e uso de contas de compensação
Ademais, um dos temas centrais das novas normas é a segregação contábil entre os ativos de clientes e os ativos próprios das empresas. Uma prática que se tornará obrigatória e auditável.
‘É muito provável que a resolução resultante da CP 122 traga o uso de contas de compensação para operações específicas, algo que já utilizamos em algumas operações com criptoativos. Nesse caso, temos o registro no passivo, refletindo as obrigações com o cliente, e a exigência de contas individualizadas refletidas na contabilidade’, explica Thaís.
Essa mudança garante que os valores custodiados não sejam confundidos com o caixa da empresa. Dessa maneira, reduzindo riscos de insolvência e aumentando a proteção patrimonial dos investidores.
Blockchain como livro-razão contábil
A transição para um modelo regulado também exige que a contabilidade reconheça a blockchain como ambiente operacional legítimo, e não como uma estrutura paralela.
‘Eu costumo dizer que a blockchain precisa ser tratada como uma conta bancária, onde tudo o que acontece ali é uma operação financeira real e deve ser contabilizada.
Se uma empresa recebe receita em uma wallet, essa wallet precisa estar registrada na contabilidade, assim como todas as transações ocorridas nela’, afirma.
A contadora alerta que o não reconhecimento de transações on-chain como fatos contábeis expõe as empresas a riscos relevantes.
Há risco de reconhecimento indevido de receitas, inconsistência na demonstração de resultados e fragilidade em caso de fiscalização. Tudo o que não for rastreável e conciliado pode gerar problemas reputacionais e regulatórios.
O desafio de harmonizar o COSIF com o mercado cripto
A adoção do COSIF, embora positiva, trará grandes desafios de harmonização técnica. Segundo Thaís, o principal obstáculo é a natureza descentralizada e dinâmica dos criptoativos, que colide com a estrutura de contas tradicional do plano contábil bancário.
‘Problemas específicos incluem a valoração de ativos sem mercado organizado, o reconhecimento contábil de tokens sem cotação, e a integração de eventos como airdrops e staking aos lançamentos contábeis. Será necessário desenvolver contas analíticas próprias e adaptar sistemas para atender tanto ao COSIF quanto às especificidades dos ativos digitais.’
Essa adaptação exigirá sistemas contábeis híbridos, capazes de registrar operações tokenizadas e contratos inteligentes (smart contracts) dentro do padrão formal exigido pelo Banco Central.
Blockchain como ferramenta de compliance
Um aspecto interessante apontado por Thaís é que a blockchain, antes vista apenas como um ambiente de transações, pode se tornar ferramenta de auditoria e compliance.
‘A blockchain pode ser usada como base de verificação independente — uma evidência imutável — para conciliar saldos, demonstrar fluxos de transações e comprovar a titularidade de carteiras. Ela se torna uma aliada da contabilidade, não um desafio.’
Esse uso da blockchain como fonte de prova pode ser fundamental para auditorias externas e fiscalizações do Banco Central, que exigirão demonstrações auditáveis e consistentes com os dados on-chain.
Padrões internacionais e futuro da contabilidade digital
O movimento brasileiro aproxima o país dos padrões internacionais IFRS, que já discutem o enquadramento dos ativos digitais em normas como o IAS 38 (ativos intangíveis) e o IFRS 9 (instrumentos financeiros).
‘O Brasil já segue o modelo internacional de contabilidade via IFRS, mas a falta de norma específica sobre criptoativos ainda faz com que usemos analogias. Hoje, os debates giram entre ativo intangível, estoque ou instrumento financeiro. Com a CP 122, teremos mais clareza sobre as definições’, afirma Thaís.
O IAS 38 está em revisão global justamente para acomodar a natureza híbrida dos criptoativos.
Thaís acredita que, no futuro, o Brasil pode ser pioneiro na criação de um padrão contábil específico para ativos digitais. Dessa maneira, o país tem o potencial de combinar elementos do COSIF com as práticas internacionais.
‘Com a chegada da tokenização bancária, é muito provável que o Brasil evolua para um novo padrão contábil específico para ativos digitais, algo híbrido entre intangível, instrumento financeiro e ativo de custódia’, projeta.
Reflexos tributários e IOF sobre cripto-câmbio
Além disso, embora o foco das resoluções seja prudencial, Thaís também alerta para possíveis efeitos tributários secundários, especialmente após a inclusão de operações com criptoativos no escopo do câmbio.
‘As resoluções já publicadas trazem a inclusão de algumas atividades em cripto como atividades de câmbio, e acredito que isso trará um longo desdobramento, inclusive tributário. Vai abrir margem para cobrança de IOF? Como as empresas vão se adaptar? O mercado vai se reinventar?’, questiona.
Segundo ela, o desafio será equilibrar compliance e inovação. Portanto, com objetivo de garantir que a contabilidade não se torne um obstáculo, mas sim um pilar de credibilidade para o setor.
Disclaimer: Coinspeaker está comprometido em fornecer reportagens imparciais e transparentes. Este artigo tem como objetivo fornecer informações precisas e oportunas. Mas não deve ser considerado como conselho financeiro ou de investimento. Como as condições do mercado podem mudar rapidamente, recomendamos que você verifique as informações por conta própria. E consulte um profissional antes de tomar qualquer decisão com base neste conteúdo.
Leonardo Cavalcanti é jornalista especializado em criptomoedas, blockchain e finanças digitais. Além de tocar projetos próprios como o podcast BlockHistory. Também trabalha em desenvolvimento de negócios no ecossistema cripto como parceiro comercial Azify, com foco em parcerias estratégicas, tokenização e soluções de infraestrutura financeira.
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